Kitabı oku: «Fanny: estudo», sayfa 6
L
O marido de Fanny não era o homem fastidiosamente bom que eu cuidava. Era um terrivel déspota. Mulher, amigos, creados, todos se acurvavam aos seus caprichos e obedeciam passivamente ás exigencias do caracter d'elle. Por zêlos, não é que elle opprimia a mulher, senão que por indomavel espirito de vontade. Em sua casa havia uma unica pessoa que dava regra e á qual deviam amoldar-se habilmente as de mais. Não se tinha em conta de mero homem; dava-se ares d'uma especie de sol que allumiava; aquecia, e communicava vida a tudo que o rodeava.
Pelo que, logo que viu sua mulher, aconselhada por mim, desviar-se insensivelmente da norma de vida que elle traçara, ficou primeiro, como pasmado; mas, com um carregar de sobr'olho, fez que Fanny entrasse immediatamente na ordem. Todavia, não lhe deu canceira averiguar o por quê d'aquella timorata tentativa de emancipação. A seu vêr, toda a mulher era ente chimerico, dirigido por machinismo incomprehensivel, que não merece analyse séria. Nem elle tinha arrebatado Fanny, nem a tinha esposado por amor. Não. Seduzira-a por que era formosa, e elle queria que uma mulher formosa fizesse as honras de sua casa. Raptou-a porque lh'a negaram. Esposara-a porque era rica, e elle pobre, e, de mais, queria, a um tempo, enriquecer-se e propagar-se.
E, como a visse submissa, todo elle era disvelos. Era-lhe ponto de honra gastar cada anno, com sua mulher dobrado do rendimento do dote, e a miudo a presenteava com ricas dadivas para ostentar sua liberalidade. Sentia por ella, em summa, alguma coisa d'aquella rudeza attenciosa que tem os cavalleiros arabes pelos seus cavallos de fina raça. Usam elles mesmos arraçoal-os com uma das mãos, tendo na outra o chicote prompto a castigar o menor desmancho.
Por largo tempo, Fanny, subjugada por aquella vontade superior, docilmente se sugeitou. Pensou, executou, viveu por elle. Á força de paciencia, obteve, por fim, de seu senhor uma apparencia de liberdade. Alguns mancebos – segundo me pareceu – approveitaram isso para cortejarem franca e assiduamente a bella mulher cujo ar de tranquillidade inculcava um longo habito de rebellião interior, e de dôres inexpansivas. D'isso, porém, o marido nem se quer suspeitou. Sómente o accaso lhe trouxera ás mãos uma carta de comprometter. A scena immediata a este descobrimento foi terrivel. Não se deram, com tudo, gritos, insultos, nem brutalidades degradantes; nem duelo, nem explicações, nem separação forçada dos dois imprudentes, que teriam castigado irremissivelmente o orgulho do esposo, mesmo quando o vingavam. O intelligente marido o que fez foi declarar a sua espoza que guardava a carta. E, desde então, cada vez que a via inclinada a emancipar-se, servia-se da tal carta para a fazer tremer e submetter-se. Um quarto de papel tornou-se nas mãos deste homem um punhal com que elle espicaçava a mulher para fazel-a andar deante d'elle.
Era, pois, um vilissimo homem? Não: era simplesmente orgulhosissimo. Ainda que aquella carta preciosa fosse mil vezes mais explicita, o marido não lhe daria credito. Em quanto a elle, aquillo, quando muito, era a prova d'uma creancice perigosa que, astutamente explorada, poderia degenerar em apparencias de crime. Mas no crime é que elle nunca acreditou. E acreditar, como? Era impossivel, pela simples razão de que sua mulher não podia mostrar-se criminosa para com elle. E não podia por que era sua mulher. E não podia, por que elle… era ELLE. Por tanto, censurando um pouco essa creancice humilhante, não se mostrava inquieto nem menos feliz. E continuou a amar a mulher, a seu modo, com aquelle seu coração de ferro. Depois de quinze annos de casado, vinham ainda ás vezes uns dias em que elle era todo amores com ella.
A arma, porém, continuava a ser arma em suas mãos, e sempre com serventia. Primeiro, graças á carta, obteve de Fanny que não fallasse mais com sua mãe, que elle detestava, por que o não quizera de bôa vontade acceitar por genro. Depois, exigiu que fizesse crear os filhos em peitos alheios, sob pretexto que os cuidados maternaes lhe desbotariam o gosto dos prazeres da sociedade. Depois, sem consultal-a, e sem visivel utilidade, vendeu o castello onde ella nascera, onde passara a infancia, e o parque onde estavam sepultados seu pai e seus dois irmãos. Finalmente, graças á prestimosa carta, não havia repressões que não lhe ordenasse, vexações que não lhe impozesse mas sem maldade, mas prodigalisando-lhe sempre obsequios e cortezias, principalmente em publico. E a vida de Fanny tornou-se um inferno no qual um implacavel demonio a torturava com uma mão, e acariciava com outra.
Quando, porém, Fanny resistia a exigencias graves, ou a ultrages brutaes á delicadeza d'ella, é que o marido rompia em transportes inauditos. Nesse caso, perdia a consciencia de si proprio, mas por uma hora sómente. Deixava de ser o homem urbanamente desdenhoso que trazia na cara os mais exquisitos matizes da superioridade de caracter, e cujo ar affavel e franco, parecia dizer a todo o mundo: «Vede que não ha que temer de mim.» Transfigurava-se em leão que a natureza amassara com as suas mãos callosas, e que a educação desbastara apenas. Hirtavam-se-lhe como crina os cabellos. Flammejavam-lhe os olhos como reflexos d'oiro fundido. As ventas dilatadas assopravam um halito ardente. A boca contrahida abria-se, e mostrava dentes admiraveis, como se ameaçassem dentadas. Crispavam-se-lhe os punhos cerrados. Era medonho. Havia um insulto que não deixava nunca de esbofetear a victima. A carta dava sempre o pretexto. E era sempre o mesmo insulto, a mesma palavra infame que a marcava na fronte como ferro em braza, e que a rebaixava – como ella dizia – á ultima escaleira de todas as mulheres.
Mas a sorte, que não tem compromissos com as paixões e os caracteres, obstinava-se por vezes a brigar com este athleta. Feriam-no successos imprevistos: obstaculos estranhos sahiam a empecer-lhe os passos. Então era sublime! Não blasphemava, não injuriava a sorte, por que sabia que era inutil; mas arcava com os successos e obstaculos, e luctava silenciosamente, friamente, pacientemente. Por custume, dominava a sorte. Quando lhe correram risco os bens da fortuna, á força de audacia, conseguio resarcir a melhor parte, abandonando a outra, como um favor irrisorio aos credores, seus emulos. Outro qualquer, no logar d'elle, esmoreceria, que vontade como a sua não havia quem a tivesse. Mas um exito mediocre não bastava a este homem, insaciavel de exitos estrondosos. Decidira safar o seu navio de entre os escolhos onde fôra a pique. Queria salvar tudo, carregação, apparelhos, e até o lastro. Jurára de não ceder ao oceano, um prego só. Eil-o ahi, que, descançando, na meditação de oito dias, dos seus primeiros trabalhos, reapparece no sitio do naufragio mais azafamado, mais resolvido, que na primeira vez. Esta partida subita cauzara a ignobil disputa de que eu fôra involuntaria testemunha.
LI
Parece que, ao jantar, em poucas palavras annunciara elle os seus projectos a Fanny. Mostrara-se tranquillo, meditativo, quasi affectuoso. Gracejou com Fanny sobre o seu ar melancolico, motivado pela vida absurda do campo. Brincou com os filhos. Foi polido, como sempre, com os creados que o serviam. Ao pospasto, levantou-se, pedio um charuto, accendeu-o, e dirigiu-se ao pavilhão, com Fanny sobraçada, dizendo-lhe frioleiras com geito amavel. Como os filhos os seguissem, brincando na relva, foi ter com elles, abraçou-os, despediu-os, e pediu-lhes affectuosamente que fossem brincar mais longe. Depois, assentou-se no divan do pavilhão, cuja porta estava aberta, fumando o charuto, e bebendo, o seu café aos golinhos. Ao cerrar da noite, veio o escudeiro com a luz. Pediu-lhe que mandasse pôr os cavallos á carruagem. Até ahi dissera sómente frivolidades com ar festivo; mas, retirado o escudeiro, ergueu-se a fechar a porta, tirou tranquillamente do bolso um papel sellado, e disse a sua mulher:
«Minha querida, escreve a tua assignatura ao lado da minha no fundo d'esta folha de papel.
Fanny pegou da penna que elle lhe offerecia, mas, antes de escrever, disse-lhe:
– Que são estes engrimanços que eu assigno?
«Não é mais que um instrumento de doação reciproca de todos os nossos bens.
Fanny depoz a penna sobre a meza, e perguntou-lhe mansamente algumas explicações sobre o uso que elle ia fazer d'aquillo. O homem avincou a testa, e annunciou-lhe que, por algum tempo, ia «reassumir o negocio, e carecia de muito dinheiro.»
– Não somos nós já bastante ricos? – disse Fanny.
«Não.
– Então vai ser exposto o meu dote?
A esta pergunta, encarou-a carrancudo, e respondeu provocante e glacialmente:
«Sim.
– Então não assigno – disse ella como atterrada da sua coragem – porque não quero expor os bens de nossos filhos.
Foi então que estalou a borrasca. Foi curta, mas pavorosa. Vendo-se contrariado por uma impossibilidade, o déspota rugiu de furor. Pela primeira vez em a sua vida, travou do braço da esposa, apertando-lho para obrigal-a a assignar, e pizou-lh'o. Fanny supportou, não respondeu, nem chorou. Cumularam-se sobre ella desprezos, incriminações, injurias, todos os insultos e vilanias compendiadas pela recordação das passadas. Veio tambem a affronta suprema, a palavra fatal, estalar na lingua do insultador. Ahi é que Fanny chorou, soluçou e decidiu-se a assignar. Serenou logo o marido: agradeceu, e quiz beijar-lhe a mão; ella, porém, mostrando-lhe o braço contuzo, disse:
– Não é por isto, Deus me é testemunha, que eu o desprezo; é pela covardia do insulto. Dito isto, elle pediu perdão por de mais, chamou-lhe creança e má cabeça, abraçou-a por força, chamou o cocheiro e partiu.
LII
Logo que Fanny, cedendo ás minhas instancias, me contou aquelles extraordinarios successos, – não ordenados como os eu repito, mas em fragmentos incoherentes, misturados de raptos de rancor; – logo que eu nada tive que indagar, e que ella immudeceu por não ter nada que contasse, ficamos algum tempo a contemplar-nos silenciosos, á luz tibia das estrellas, com spasmo temeroso. Alguma coisa formidavel se estava erguendo entre nós modificando estranhamente a nossa situação.
Eu não pude, ainda assim, entrar logo na averiguação dos factos que, forçosamente, deviam derivar d'aquella surprehendente confissão. Eu, vendo Fanny ainda pallida, descompostos os cabellos, e tremula, só pensava na sua humilhação. – É pois desgraçada! – disse eu no intimo da minha alma. Tirei-a a mim suavemente pelo colo, busquei-lhe os labios, e abriguei-a nos meus braços com o ardor da esperança e da piedade.
Oh! como foi longo, estreito e desesperado aquelle abraço! Com elle se esposaram nossas almas, e ali sentimos o que ha de piedade na mudez d'aquelle apertar, de consolações nos suspiros, e que sympathia reflorece da mixtão das lagrimas! Éramos sósinhos, silenciosos, n'uma vaga escuridão, adornada pelo tibio alumiar de noite de estio. O desalinho dos vestidos de Fanny, o cansaço de chorar que a retinha deitada nos meus braços, o pejo d'uma confissão, que, posto que lhe desse alivio á alma, lhe opprimia o orgulho pela primeira vez; a felicidade de nos revermos mais amantes, mais alliançados que nunca, após uma scena terrivel que devia desligar-nos: isso tudo insinuava-nos não sei que desaffôgo de expansão reciproca, mesclada de amargura e dulcificação. Emquanto meus labios lhe rossavam de leve os longos cabellos desannelados, surprehendia-lhe no coração a velocidade de movimentos que se me figuravam surdas expressões de cólera. O arrepender-se de ter defendido por tanto tempo e nobremente, contra os meus ataques, aquelle que lhe era um jugo na vida, arrancava-lhe gritos de uma ironia implacavel. A irritação do insulto, e a indignação do aviltamento immerecido, apertava-lhe os braços em volta do meu pescoço mais energicamente do que nunca o fizera o amor. Ao mesmo tempo, o pesar de ter flagellado o amante, cuja só presença lhe estava sendo a mais terna das consolações, como a mais rapida e segura das vinganças, inspirava-lhe a submissão e a supplica. A lembrança do meu rival, presente a nós, ajuntava uma acrimonia angustiosa aos beijos d'ella, e uma dôr infinita ás minhas caricias; e n'aquelle instante ao menos, em que, sem fallar, trocamos tantas sensações e idéas bem comprehensiveis, Fanny, estava emfim, na minha idealidade, absolutamente, e para sempre, tão ligada a mim quanto apartada d'elle.
LIII
Quando recobramos a palavra, o furor, reconcentrado em mim, fez subita explosão.
Fanny ficou estupefacta. Pronunciei, como um demente, palavras ardentes, sem nexo. Uma especie de loucura acerava, como laminas de um punhal, cada uma das minhas phrazes, e a raiva hervava-as de peçonha a mais corrosiva.
O sentimento da impotencia da vingança, a certeza de que os males d'aquella mulher deviam renovar-se infinitamente, e os meus ciumes passados, e mais que tudo, a memoria das nossas deploraveis questões, causadas por aquelle indigno homem, faziam-me offegar de colera como homem que acaba de levar uma bofetada, e não pode despedaçar entre as mãos aquelle que lhe gravou o ferrete deshonroso… Na minha demencia, parecia-me que o amor de Fanny, perdia tanto do seu valor, quanto mais desgraçada ella era; e, envergonhado d'esta atroz idéa, meditava em matar, e dar por ella a minha vida. Fanny, porém, ainda abatida, mais queria ser consolada que vingada.
Abraçou-me, e, coisa estranha! foi ella que me affagou para me pacificar.
LIV
Passei o dia seguinte a recordar tudo o que tinha sabido. Havia muito que eu não sentira, como então, o espirito desoprimido de duvida.
Um feliz provir se descortinava ante os meus olhos, depois de tão tormentoso passado, como serenos valles e descampados aos olhos do viajante que desce a ladeira escarpada de perigosas serranias. A esperança d'uma existencia quieta refrigera a alma como a briza da tarde que succede aos ardores do dia, e agora tudo me convidava a repousar-me á borda da senda facil, que docemente se aplanava debaixo de meus pés contusos. A serenidade dos dias, a auzencia das inquietações, eram a minha prespectiva. Pensava n'isto sempre, e minha alma enlevada derramava-se em effluvios de reconhecimento ao acaso que se cansara, emfim, de me transviar.
Entrava n'este sonho necessariamente a imagem de Fanny. Era a companheira que me seguira através dos abysmos da paixão. Soffrera irmamente commigo a longura das caminhadas, a incerteza do fim, os espinhos occultos sobre os quaes, juntos, laceravamos os pés. A mesma dôr nos arraiara de sangue os olhos, e abrazára os nossos halitos. A ancia do repouso sentiramol-a ambos ao mesmo tempo. E, como se fosse preciso que o mais debil dos dois soffresse mais, Fanny dava-me alentos para a resignação, e com as mãos trementes enxugava-me da fronte o suor do desespero, e ao mesmo tempo escondia-me dôres e trances particulares que ella suportava heroicamente para me não angustiar.
Mas agora esses desgostos que eu surprehendera, estavam sanados. Renascer não poderiam mais. Ambos livres do phantasma que tão cruelmente nos perseguira, podiamos, em fim, senhores de nossas acções, compensarmo-nos amplamente do supplicio e dos terrores. Á maneira de dois fugitivos, que não deixaram pégadas, e vão ás bordas das fontes, e á sombra dos bosques silenciosos, sacudir o pó das sandalias, nós nos íamos, emfim, vingar da sorte estupida, esquecendo os tormentos que nos infligiramos.
D'est'arte sonhava eu, a sós commigo, contemplando a imagem querida de Fanny que me sorria entre as mãos, cingida em moldura de ouro, como d'uma aureola. Assim me comprazia dispondo ante nós as paragens do nosso futuro.
Nunca eu afagara mais cruel illusão!
LV
O dia em que tornei a vêr Fanny, era um dia explendido!
Veio a minha casa, de manhã, deliciosamente vestida, como para celebrar dignamente as nupcias da nossa felicidade. O seu vestido côr de malva, que tão gentilmente condizia com a frescura da sua pelle, resplendia sobre as fórmas esbeltas e finas, e caia-lhe em reverberos, sobre os pés. Os braços meio nús, sobresahiam das rendas das mangas, com reflexos baços como os de marfim não lustrado ainda. Do corpete chanfrado sobre o seio elevava-se, um pouco inclinado, o colo alvissimo. Por de sobre as faces ondulavam-lhe os cabellos.
Nenhum ruido nos perturbava, a não ser a campainha do relogio que não ouviamos, e, de longe em longe, o rodar precipitado e passageiro das carruagens, estremecendo a calçada. Conversamos, mais uma vez, sós por sós. Fanny comeu pouco, sorrindo, como a pedir perdão. Eu ergui-me para servil-a, e abraçava-a na passagem. Ella ministrava-me o vinho, com graça, vertendo-o d'alto, e eu todo me enlevava na formosura d'aquelle braço que se inquadrava no vacuo sombrio da sua larga manga. Nunca o nosso quarto nos parecera tão bonito! Queriamos d'alli não sahir mais!
Ergueu-se Fanny, e foi sentar-se no diwan. Colloquei-me a seus pés sobre uma almofada, com o cotovello sobre o joelho d'ella, e longo tempo estivemos assim mudos a contemplar-nos. Com uma de suas mãos, intromettidas nos seus cabellos, levantava-os aos tufos, e devidia-os. E eu beijava-lhe a outra mão, travada na minha.
– Oh Fanny! se tu não fosses casada!.. – dizia-lhe eu com paixão. E ella respondia:
– Oh Roger! se tu não fosses cioso!..
Não sei como se passou o dia; mas mui rapido passou! Em mutuos olhares de extasis, em abraços doidos de ternura, em ir e vir d'uma para outra camara, que horas tão instantaneas correram! Quiz saber a historia da minha vida. Contei-lh'a: era simplissima. Chorou ouvindo a narrativa da morte de minha mãe.
Muito havia que não estiveramos tão intimos, serenos, e felizes. O rancor atroz do ciume não nos separava. Expandimo-nos sem reverva: por isso mesmo foi completo o socêgo de nossas almas. Havia ali felicidade que bastaria á boa fortuna de dez amantes.
Cotejando em meu espirito aquelle dia singular com todos os precedentes, lembrou-me de repente a causa que, por mais d'um anno, nos fizera tão desgraçados. Rompeu de minha boca uma exclamação furiosa, e, por piedade das angustias de Fanny, tanto tempo escondidas, não pude conter-me que não exprobrasse o oppressor.
Fiquei como empedrado quando vi Fanny franzir então a testa, e morder os labios. Relanceou-lhe rapida na face uma sensação, como o relampago silencioso que fende uma nuvem. Depois sorriu, e acalmou como o céo d'uma tarde estiva. Eu, porém, curei de indagar a causa d'aquella sensação dolorosa, e tornei-me pensativo e triste, por não sei que confusa remeniscencia.
LVI
Fanny retirou-se sem parecer notar em mim turvação alguma. Depois que sahiu, mil recordações uma apoz outras, como vagas d'um mar silencioso cumulavam-me o espirito. O porte de Fanny pareceu-me agora mais que nunca incomprehensivel.
– Esta mulher é a mais extraordinaria ou a mais vil das mulheres! – Disse, e repassei na memoria quanto sabia d'ella. Mas, outra vez ainda, tudo me pareceu contradictorio em sua indole. – Por que defendia o meu rival quando eu ignorava as suas violencias? Por que o accusou depois? Por que impallidece agora se me ouve reprovar as acções do homem que a ultraja? Oh! é possivel supporte tamanhos despresos, vexações tão aviltantes, e conserve a minima affeição a um homem que a tortura e humilha!! Indecifravel enigma. Ama-me ella? Ama o marido? Que ha ahi de commum entre essa mistura de seres, de sentimentos, de calculos, de transações, e o amor, esta paixão absoluta, intolerante, e exclusiva? Deste modo ajuntava, separava, e confundia todos os factos da nossa existencia commum sem poder desinredar o inextricavel fio da meada. Cada facto, por seu turno, vibrava-me no ouvido, como um som agudo; e, á maneira d'um clamor synistro, estrondeando por sobre tudo, rugia incessante aquella palavra da consciencia de Fanny, proferida, um dia, para meu supplicio:
– Eu mentiria se dissesse que o não estimo.
LVII
Desde então, illaqueado mais estreitamente que nunca na rede das incertezas, um só desejo me dominava – tirar de Fanny a explicação do seu caracter, não interrogando-a, mas compelindo-a a extremos indicativos.
Aggredi acintemente o marido deante de Fanny: difficil fôra o defendel-o, por que o ataque era dirigido ás violencias que lhe eram a ella feitas. Limitou-se, primeiro, ao silencio, erguendo ao céo os olhos, por que eu a estava pranteando; depois, mostrou-se descontente da asperesa das minhas palavras. Repentinamente lhe assomou á face o sangue, os labios cerraram-se, as palpebras descahiram, isto a tempo que eu lhe estava exaltando a resignação para melhor accusar os caprichos do marido. Obedeceu, por fim, á sua eterna preoccupação, e disse-me:
– Não fallemos mais de tal: tudo isso é triste; mas eu sou obrigada a submetter-me. Ao cabo de tudo, sempre é meu marido!